Ex.ma Sr.ª Secretária de Estado da Saúde
Vem pelo presente esta Associação dirigir-se muito respeitosamente a V.Exa nos termos e pelos factos seguintes:
A Desfibrilhação Automática Externa (DAE) surgiu na década de 90 como forma de tratamento da Paragem Cardiorrespiratória (PCR), sendo utilizados aparelhos que qualquer cidadão com o mínimo de treino os pudesse utilizar, tendo evoluído até ao presente para equipamentos intuitivos e com instruções faladas e, em muitos casos, imagens animadas que os tornam utilizáveis por qualquer pessoa, leiga, sem que daí resulte qualquer risco acrescido.
Em Portugal, comparativamente com outros países, a implementação da DAE na sociedade tem sofrido um atraso significativo, resultante não só da deficiente formação da população em Suporte Básico de Vida (SBV), mas também pelo facto de, em 2009, através do Decreto-Lei 188/2009, ter sido implementada pelo Governo a regulamentação destes equipamentos inseridos em programas de acesso público no denominado “Plano Nacional de Desfibrilhação Automática Externa” (PNDAE). Em consequência, Portugal é um dos raríssimos países onde o acesso ao direito de ser reanimado em caso de PCR passou a estar condicionado à existência de um licenciamento.
Para nós, estas condicionantes criadas pela regulamentação existente são incompreensíveis, até porque o próprio Decreto-Lei 188/2009, no seu preâmbulo, assume que “Em Portugal as doenças cardiovasculares constituem um dos problemas de saúde mais graves para a população, representando a principal causa de morte. A maioria das mortes evitáveis associa-se à doença coronária e ocorre fora dos hospitais. A evidência empírica permite afirmar que, em mais de metade dos casos de paragem cardiorrespiratória, as vítimas não chegam com vida aos hospitais.” Considera-se ainda demonstrado pelo mesmo diploma que muitas destas mortes são evitáveis: “O único tratamento eficaz na paragem cardíaca devida a fibrilhação ventricular é a desfibrilhação elétrica, demonstrando a experiência internacional que a utilização de desfibrilhadores automáticos externos em ambiente extra-hospitalar por pessoal não médico aumenta significativamente a probabilidade de sobrevivência das vítimas”. Assim, se existe o reconhecimento deste problema e se o uso de DAE pode evitar a morte, questionamo-nos recorrentemente sobre como pode a legislação continuar a limitar o acesso a este recurso, com o custo efetivo da perda de vidas que poderiam ser salvas?
A resposta a esta questão pode-se encontrar na própria lei que “Ao contrário do que acontece noutros países, nos quais existe uma verdadeira cultura de emergência médica enraizada na sociedade, em Portugal ainda não estão reunidos os pressupostos para a adoção de um sistema que permita a utilização relativamente livre de desfibrilhadores automáticos externos pela população em geral. Atendendo a que, por um lado, a nossa cultura de emergência médica é incipiente e o desconhecimento das técnicas de suporte básico de vida é generalizado na população e, por outro, os riscos da má utilização de equipamentos de DAE aumentam na proporção do desconhecimento do utilizador, julgou se mais adequado começar pela implementação de um sistema de supervisão”.
Ou seja, ao invés de colmatar a falta de formação em suporte básico de vida e melhorar a cultura de emergência médica da população nacional, este Decreto-Lei limita o acesso à utilização de DAE até mesmo a quem possui formação e competência adequada. Por exemplo, muitos profissionais ou voluntários de emergência e de saúde no ativo (ou inativos), nacionais e estrangeiros, com competência para colocar em prática o Suporte Básico de Vida com Desfibrilhação Automática Externa e assim capazes de evitar mortes, deparam-se com constrangimentos ao acesso a um desfibrilhador automático externo.
O Decreto-Lei 188/2009 espelha, no número 1 do Artigo 3º “A prática de actos de DAE por operacionais não médicos, em ambiente extra-hospitalar, só é permitida sob supervisão médica e nos termos do presente decreto-lei”, o receio de má utilização do equipamento. No entanto, este pressuposto apenas reforça, no nosso entender, o atraso nacional em cultura de Emergência Médica, e fragiliza o elo da desfibrilhação precoce na Cadeia de Sobrevivência, mencionada nos números 2 e 3 do mesmo artigo. A evolução da tecnologia e as claras instruções incluídas nos aparelhos de Desfibrilhação Automática Externa modernos são os fatores preponderantes que evitam a sua má utilização, e não a supervisão médica. Adicionalmente, a evidência científica atual demonstra que, mesmo em caso de má utilização do equipamento, não está documentado risco de saúde ou de vida para a vítima.
Questionamo-nos como pode estar Portugal, ao fim de 14 anos da publicação desta legislação, mesmo existindo alguns programas de desfibrilhação, tão atrasado em relação aos restantes países europeus na taxa de reversão da paragem cardiorrespiratória em ambiente pré-hospitalar?
Uma vez mais, a resposta pode ser encontrada na própria legislação que penaliza a implementação de programas de desfibrilhação de acesso público, através de um conjunto de normas impostas pela própria lei bem como outras criadas pelo INEM, limitando o uso, e principalmente a disponibilidade destes equipamentos tais como:
- A necessidade de existir uma declaração de delegação de competências;
- A limitação do uso de um determinado equipamento unicamente pelos operacionais registados no licenciamento atribuído pelo INEM.
Qual será a motivação destas limitações quando a própria lei, nos números 1 e 2 do seu Artigo 9º, reconhece que:
“1 — São operacionais de DAE os indivíduos não médicos, devidamente certificados para tal nos termos do presente decreto-lei.
2 — A certificação referida no número anterior está dependente da conclusão, com aproveitamento, de um curso de formação específico, cujos termos e condições constam do PNDAE”?
Apesar do diploma em apreço, no seu “Artigo 27º — “Exclusão da punibilidade”, não responsabilizar qualquer operacional que use um DAE não enquadrado no licenciamento onde este equipamento esteja inserido, a entidade que o disponibilizou e para o qual o licenciou, incorre em coimas conforme se pode confirmar nas normas disponibilizadas pelo INEM em “Critérios técnicos sobre implementação de Programas de DAE” em que, com base no Artigo 25º deste diploma, estabelece na alínea c) “Prática de atos de DAE por operacionais de DAE fora dos locais em que esteja habilitado a atuar” penaliza as entidades detentoras com contraordenações conforme o nº 1 do mesmo Artigo 1º, que estabelece que “Sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal, nos termos gerais, constitui contra -ordenação punível com coima de € 500 a € 3740 ou de € 5000 a € 44 500, consoante se trate de pessoa singular ou coletiva”. Assim, um operacional formado e certificado, caso utilize um equipamento fora do programa licenciado onde foi integrado, pode dar origem a que a entidade detentora de um equipamento possa ser prejudicada com contraordenações e responsabilidade criminal por ter contribuído para o bem da sociedade, num investimento que a serve e tem o objetivo de disponibilizar um recurso que ajuda a salvar vidas humanas. Estas normas punitivas contrariam o disposto no Artigo 35º do Código Penal.
É nosso entendimento e profunda convicção que, atentando ao disposto no Nº 1 do Artigo 35º do Código Penal “Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”, é retirado todo sentido à existência do Decreto-Lei 188/2009.
Outras limitações impostas por esta lei e pelas normas a que o INEM obriga, são a dificuldade no próprio processo de licenciamento, sendo exigido um conjunto de documentação que em nada contribui para a segurança no uso do equipamento ou para a celeridade do processo, tem utilidade nula para a sociedade, e somente obriga a uma carga burocrática sem sentido. Não conseguimos entender a justificação ou a necessidade da existência do processo de licenciamento no seu desenho atual, que contribui para o sacrifício de vidas humanas pela sua morosidade.
Acresce à dificuldade na implementação de desfibrilhadores automáticos externos, realizada na sua vasta maioria por entidades privadas ou municipais e não pelos organismos estatais, a forma de fiscalização pelo INEM que prima pela aplicação de sanções e contra ordenações, que em nada servem o interesse público, e são manifestamente contrárias ao Artigo 35º do Código Penal.
Também não compreendemos nem podemos aceitar que seja exigido o mesmo licenciamento que a qualquer outra entidade a ambulâncias de transporte de doentes, apesar de tripuladas por profissionais com formação, competências e credenciação para reanimação com recurso à Desfibrilhação Automática Externa. Como consequência do diploma em questão e das dificuldades que cria à instalação e utilização de DAE, a maioria das ambulâncias de transporte de doentes externas ao INEM não possuem este equipamento, sendo este mais um exemplo de como o Decreto-Lei 188/2009 prejudica gravemente a sociedade, o cidadão e a salvaguarda da vida humana.
Mais recentemente, e embora não suportado por qualquer diploma legal, o INEM exige que para a aprovar um programa de DAE a entidade requerente garanta a resposta de um operacional de DAE, situação em nosso entendimento contrária ao interesse público já que, o facto de no momento da fiscalização não haver resposta em 3 minutos, não significa que no momento da ocorrência não esteja no local alguém habilitado, mesmo até um profissional de saúde que por acaso ali estaria de passagem. Tal situação leva-nos a questionar em quantas ocorrências o INEM está junto da vítima dentro dos tempos recomendáveis e, se se adotar este critério para o INEM se não teria já reprovado.
É assim nossa absoluta convicção que o diploma em questão compromete seriamente o cidadão no seu direito de acesso à assistência adequada ao seu estado de saúde, conforme a Lei 95/2019, de 4 de setembro, que determina que o cidadão tem o direito “a aceder aos cuidados de saúde adequados à sua situação, com prontidão e no tempo considerado clinicamente aceitável, de forma digna, de acordo com a melhor evidência científica disponível e seguindo as boas práticas de qualidade e segurança em saúde”. O Dec. Lei 188/2009 afirma que “o único tratamento eficaz na paragem cardíaca devida a fibrilhação ventricular é a desfibrilhação elétrica”, mas, com as sérias limitações obsoletas que impõe à reanimação adequada e atempada, está a violar a integridade moral e física das pessoas, em manifesto incumprimento do Artigo 25º da Constituição da República Portuguesa.
Entendemos assim que, a afirmação de que “em Portugal ainda não estão reunidos os pressupostos para a adoção de um sistema que permita a utilização relativamente livre de desfibrilhadores automáticos externos pela população em geral. Atendendo a que, por um lado, a nossa cultura de emergência médica é incipiente e o desconhecimento das técnicas de suporte básico de vida é generalizado na população” é falaciosa e que o Decreto-Lei 188/2009 penaliza quem tem o interesse de disponibilizar estes equipamentos à comunidade, e limita de forma grave a massificação de programas de desfibrilhação automática, quando atualmente já existem milhares de cidadãos formados pelas diversas entidades certificadas para a prática de Suporte Básico de Vida com recurso a DAE. Recordamos que as sociedades médico-científicas internacionais, nomeadamente, o European Resuscitation Council afirma nas suas guidelines de 2021 que “os benefícios da desfibrilhação precoce na sobrevida e no resultado da reanimação, através de programas de desfibrilhação de acesso público e maior acessibilidade e disponibilidade de DAE na comunidade, são inquestionáveis. Estes benefícios têm sido atribuídos à diminuição do tempo para desfibrilhação aplicada pelo cidadão comum versus profissionais de Emergência, porque a probabilidade de sobrevivência em paragem cardiorrespiratória desfibrilhável em ambiente extra-hospitalar diminui significativamente a cada minuto de atraso na desfibrilhação. A desfibrilhação aplicada entre 3 e 5 minutos após o colapso pode produzir taxas de sobrevivência tão altas quanto 50 a 70%. Este sucesso só pode ser alcançado por programas de acesso público e desfibrilhadores automáticos externos no local. Cada minuto de atraso na desfibrilhação reduz a probabilidade de sobrevivência em 10 a 12%.”
Advogamos ainda que, a existir legislação nacional no âmbito da prática da desfibrilhação automática externa, ao contrário de ser um entrave à salvaguarda da vida humana, que recomende a posse particular destes equipamentos por parte de profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, cardiopneumnologistas, técnicos de emergência pré-hospitalar, tripulantes de ambulância), de pessoas não profissionais de saúde que possuem formação para a operação, e que obrigue mesmo à existência destes equipamentos em todo o tipo de espaço de acesso público, e ainda, que fomente educação para o seu uso de forma mais pedagógica e menos obrigatória, nomeadamente através da inclusão da desfibrilhação automática externa em ações de mass training, com o objetivo final da redução de mortes evitáveis. Bem como que, a haver uma autorização para instalação de DAE em locais públicos ou privados, as entidades apenas tenham de garantir que o mesmo se encontre sempre operacional com bateria com carga e consumíveis dentro dos prazos de validade, e tal como um extintor à disposição de quem no momento da ocorrência o saiba usar.
Com os melhores cumprimentos. Atentamente,